A minha infância foi marcada de forma um tanto exagerada por um modelo especial de faca, a faca de mesa do jogo da vovó. É claro que mais tarde tinha faca comprida e a faca redonda da mãe, mas este é outro assunto, pois entras eu não sei onde foram parar. Mas a faca de mesa que marcou meus primeiros anos como no caso do escorpião ou do marmelo, finalmente veio parar em minhas mãos, já bem judiada e com o cabo caindo. Ah! O cabo que eu sempre pensava que era de prata maciça, era só uma casquinha cheia de uma resina farelenta. Como a faca significava muito para mim, resolvi recuperá-la e aí fui esquentar a resina para tirar de dentro do cabo e substituir por algo que pudesse fixar o cabo novamente. Então veio a surpresa… a faca era, na verdade, uma chave da máquina do tempo que me levou de volta ao início dos anos 70.

Logo que comecei a esquentar o cabo a resina derreteu e um perfume intenso invadiu o ambiente. O cheiro do breu me levou a uma reunião na frente da oficina do tio Miro, aquela que queimou algum tempo depois. Um sujeito, recém chegado, apeara de um cavalo meio esbaforido e ofegante, estava com uma calça meio rasgada e quase chorando:
– Preciso falar com o Seu Borto.
Acho que foi o Osmar que o atendeu dizendo.
– Ele está lá em baixo montando uma pipa – e se virando pra mim – podes chamar ele?
Desci correndo chamando – Vovô! Vovô!
Ele saiu de dentro da pipa que estava picando com o enxó goivo para emparelhar por dentro. (Isso dá outra história). E respondeu com uma pergunta:
– O que foi?
– Tem um cara que quer falar com o senhor, tá ali na frente.
Quando chegamos já estavam com ele o tio Miro e mais alguns que não me lembro.
– O que aconteceu? – perguntou o vovô.
– Meu irmão caiu do telhado e se quebrou todo.
– E onde ele está?
– Tão trazendo ele de carroça eu vim na frente pra ver se o senhor podia atender ele senão temos que ir pra Palmeira.
– Você acha quer ele tem osso quebrado?
– Sim, a perna dele tá um esse. E tá todo esfolado.
O vovô olhou para ele, evidentemente apavorado e da forma que ele falou em ir para Palmeira dava a entender que não tinha condições econômicas de arcar com tratamento médico, (naquela época não tinha SUS) com a calma e bondade que lhe eram características disse:
– Vamos arrumar as coisas e ver o que se pode fazer por aqui.
O sujeito respirou aliviado e ficou por aí conversando com o grupo enquanto a carroça não chegava. O vovô saiu e fui com ele para ver os preparativos. Eu fiquei só olhando. Ele foi até o galpão onde tinha um taquaruçu seco cortou os gomos mais compridos e lascou em talas, alisou bem e arredondou as pontas, foi até a cozinha colocou tudo dentro de uma panela grande com um pouco de água da caldeira do fogão e pôs a ferver. Aí se dirigiu para o quartinho dos fundos onde, num armário, tinha roupas usadas. Pegou um lençol e foi rasgando em tiras, pegou um grande pacote de algodão e uma lata com umas pedras amareladas e voltou pra cozinha e me pediu que fosse abrindo o algodão em tiras. Eu não entendi nada do procedimento mas fui fazendo como ele mandou.
Tirou as talas da água fervente e testou a flexibilidade, secou e pôs no forninho do fogão. Em seguida tirou de lá e esfregou a pedra nas talas…
O mesmo cheiro da resina do cabo da faca… Era o breu que ele usava para grudar o algodão nas talas para ficarem macias, pois ficariam pelo menos 20 dias em contato com a pele. Revestiu as talas com algodão que ficaram bem fofinhas. Lembro como se fosse hoje, testei a maciez das talas, eram muito firmes com uma camada fofinha. Pôs algumas pedras de breu numa caneca para derreter, mas deixou na espera.
Pegou outro lençol velho e estendeu sobre a cama do quartinho.
– Estamos prontos!
Saímos e fomos ao encontro dos outros foi aí que alguém dos que tinham ficado conversando com o homem disse:
– Parece que o caso é sério, mandamos chamar o Gervásio para ajudar.
Não demorou e já vinha chegando a ambulância puxada a cavalo. O paciente gritava a cada solavanco. Foi carregado e largado na cama, quando eu vi que estava ensanguentado e esfolado dei no pé. O vovô perdeu o ajudante.
Só me aproximei de novo quando ela já estava com curativos e a perna devidamente entalada. O breu derretido era colocado nas ataduras externas para dar firmeza às talas, ficava quase como engessado com aquele cheiro característico do breu.
Assim a faca de mesa me levou novamente ao passado. Ela é muito mais que uma peça de museu, é na verdade uma chave para viajar no tempo.